Já pensou se a vida em Marte, ao invés de florescer e transformar Marte num paraíso, tivesse dado um tiro no próprio pé… ou melhor, na própria crosta? Entre expectativas de marcianos e filmes de ficção, a hipótese de que a vida marciana possa ter, literalmente, arruinado o seu próprio planeta surge como uma reviravolta que nem o melhor roteirista teria imaginado. Prepare-se: a ciência por trás dessa história declara que, às vezes, a vida pode ser a maior vilã do pedaço vermelho do Sistema Solar.
Um início tumultuado (mas animado) no Sistema Solar
Quatro bilhões de anos atrás, o Sistema Solar ainda era um adolescente. Planetas estavam se formando — com direito a muitos asteroides voando e batendo onde podiam. Quando essa fase turbulenta começou a desacelerar, a Terra se tornou habitável e, pouco mais tarde, habitada. Só que a biosfera daquela época mal se parecia com a de hoje: nada de florestas, corais ou passarinhos. Era uma época em que sequer havia sido inventada a fotossíntese!
Os primeiros habitantes eram micro-organismos sobrevivendo à base de energia química, tirada das profundezas vulcânicas e hidrotermais, onde gases escapavam e se acumulavam na atmosfera. Uma turminha especial — os chamados “metanogênicos hidrogenotróficos” — soube aproveitar o clima. Alimentavam-se de CO2 e de hidrogênio (que eram bem mais comuns na atmosfera que hoje) e, em troca, lançavam enormes quantidades de metano no ar. Metano esse que, como um edredom quentinho planetário, ajudava a aquecer a Terra na infância de um Sol meio preguiçoso.
Terra e Marte: vizinhos, mas com histórias diferentes?
Se na Terra essa metamorfose favoreceu a complexidade da biosfera, o que teria acontecido em Marte, nosso vizinho vermelho? Conforme avançam as explorações, tudo indica que, há bilhões de anos, Marte também possuía ambientes subterrâneos (até 4 quilômetros de profundidade!) que poderiam abrigar vida microbiana—especialmente protegida da radiação mortal da superfície, em regiões com água líquida e boa disponibilidade de energia química.
Para responder à pergunta “o que teria acontecido se a vida emergisse em Marte como na Terra?”, pesquisadores criaram três modelos acoplados:
- O primeiro prevê como o vulcanismo, a química atmosférica marciana e a perda de gases para o espaço influenciavam a pressão e composição atmosféricas… e, consequentemente, o clima marciano.
- O segundo detalha as características físico-químicas da crosta porosa marciana — temperatura, composição química, água líquida —, determinadas tanto por fatores de superfície quanto internos.
- O último modelo aborda a biologia de hipotéticos metanogênicos marcianos, assumindo que suas necessidades energéticas eram parecidas com as dos primos terrestres.
Esses modelos permitiram simular centenas de possíveis “Mares do passado”, criando cenários do clima e da habitabilidade marciana ditadas não só pela geologia, mas também pela possível atuação da vida.
Por que a vida em Marte pode ter colaborado com a catástrofe?
E os resultados? Bem, eles não são daqueles que deixam a trilha sonora animada. Indícios geológicos mostram que Marte tinha rios, lagos e até oceanos, e dispunha de uma atmosfera densa e rica em CO2 e H2 — gases essenciais para a festa dos metanogênicos.
Porém, há um detalhe fundamental: nessas condições, o hidrogênio era um gás de efeito estufa ainda mais potente do que o metano. Ou seja, a manutenção do clima “quentinho” dependia fortemente do H2. Eis que a vida metanogênica, ao consumir avidamente o hidrogênio e liberar metano, pode ter feito o clima marciano despencar várias dezenas de graus — literalmente “grudando” Marte num congelador cósmico. E, conforme a superfície ia sendo coberta por gelo, nossos hipotéticos micro-organismos seriam obrigados a se esconder cada vez mais profundo, afastando-se de suas fontes energéticas e tornando a sobrevivência quase impossível.
- Quando o efeito estufa não era suficiente, Marte virava uma bola de gelo — sem chance para água líquida nem vida metanogênica em superfície.
- No melhor cenário, a vida teria que se entocar no subterrâneo, cada vez mais longe da energia vital da atmosfera.
No fundo, sob ação da vida que ali podia ter surgido, Marte teria se tornado muito menos hospitaleira do que era inicialmente.
A vida realmente sabe se autorregular?
Lá nos anos 1970, James Lovelock e Lynn Margulis propuseram a famosa hipótese de Gaia: a ideia de que a biosfera da Terra se autorregula de maneira harmoniosa para manter o planeta habitável (com exceção, claro, de nós humanos, que somos um caso à parte no clube do bom senso ambiental). Isso gerou o conceito de “gargalo gaiano”: talvez o maior obstáculo para a vida no universo não seja o surgimento, mas sim a sua habilidade de não sabotar o próprio lar ao longo do tempo.
Porém, a lição vinda de Marte pode ser ainda mais dura. Os modelos sugerem que a vida (sim, até as formas mais simples, sem nem precisar de consciência ecológica!) pode, em certas condições, piorar — e muito — o ambiente planetário. Fica uma pergunta desconcertante: será que essa tendência autodestrutiva não é, na verdade, o real limitador da abundância de vida no universo?
Portanto, se encontrar sinais de antigos micróbios marcianos, talvez devamos parabenizá-los… por pouco tempo. Afinal, quem sabe eles escrevam a primeira versão marciana do manual “Como não cuidar do meu planeta”?