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Bolívia: Paz põe fim à temporada de governos socialistas, o país andino está pronto para uma virada

O novo presidente terá de governar com coligação de partidos, pois não pode gozar de maioria absoluta no Parlamento

Vencedor do segundo turno realizado no domingo contra Jorge “Tuto” Quirogao expoente do Partido Democrata Cristão Rodrigo Paz Pereira ele será o novo presidente da Bolívia a partir de 8 de novembro. Posição que assume com três importantes inovações: Paz foi o primeiro vencedor de uma votação presidencial, mecanismo introduzido com a Constituição de 2009, e será o primeiro a ter que governar com uma coligação de partidos, não podendo gozar de maioria absoluta no Parlamento. Mas Paz será lembrado sobretudo por ter posto fim à temporada de governos “neo-socialistas” iniciada por Evo Morales em 2005 e continuou desde Luis Arce (2020-2025), salvo o breve e atormentado período do presidente interino Jeanine Anez (2019-2020). Uma viragem amplamente celebrada no debate interno e regional pela expectativa de que a Bolívia consiga rever as relações consolidadas até agora com países como a China e a Rússia, ainda que a afirmação de Paz pareça prenunciar uma mudança menos abrupta do que a que o desafiante, Quiroga, poderia ter feito. O presidente eleito vê-se confrontado com um cenário interno particularmente complexo, marcado por uma crise cada vez mais aguda em termos de finanças públicas e de estabilidade social.

A mudança mais significativa deve ser vista na política externa, considerando o desejo de Paz de adotar “aberturas pragmáticas” que vão além das abordagens ideológicas – o alinhamento com o chamado “sul global”, incluindo a Rússia e a China – seguida pelos governos do Movimento pelo Socialismo (Mas). A ideia forte é diversificar as alianças, criando oportunidades de intercâmbio comercial com mercados até então excluídos, sem negar alianças consolidadas como a de Pequim. A expectativa é antes de tudo pela retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos, interrompidas em 2008 em meio a uma crise entre o então presidente Evo Morales e a administração norte-americana, que surgiu após a expulsão do embaixador e de funcionários da agência antidrogas DEA. Paz colocou, portanto, sobre a mesa um possível acordo de cooperação económica no valor de 1,5 mil milhões de dólares, para abastecer o país de combustível e travar uma crise visível nas filas cada vez mais longas nos postos de gasolina. Mas aproximar-se de Washington, argumentam quase todos os analistas, contrariando as palavras do presidente eleito, significa também abrir-se ao diálogo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou com os bancos multilaterais, porta de entrada ao financiamento para relançar a economia.

Além disso, o presidente eleito não pretende abrir mão dos laços com a China, considerando-a, embora fora da agenda da chamada “diplomacia Sul-Sul”, um aliado fundamental para o desenvolvimento: Pequim garante investimentos fundamentais em infra-estruturas, redes de satélites e minas. O segmento do lítio é crucial, um metal do qual a Bolívia possui enormes quantidades: duas leis estão pendentes no Parlamento para autorizar empresas chinesas e russas a realizar projetos de exploração de lítio. As eleições que se aproximam, com a saída progressiva dos candidatos socialistas, acabaram por congelar o processo parlamentar, embora a expectativa seja de que sejam feitos acordos mais “transparentes”, mas sem abrir mão do capital chinês. Mesmo que não tenha seguido a abrupta inversão de rumo prometida por Quiroga, a Bolívia prepara-se, no entanto, para redefinir a sua posição geopolítica, tal como o fez recentemente o Equador. Daniel Noboaque pedirá através de um referendo poder devolver aos EUA o uso de bases norte-americanas no território. Um bloco “pró-Ocidente” liderado pela Argentina Javier Mileie El Salvador de Nayib Bukele e à qual Chile e Colômbia poderão retornar em breve, considerando que as pesquisas estimam o fim das respectivas experiências de governos de esquerda. Contudo, tal como no caso do Equador, o receio dos observadores é que as reformas inevitavelmente destinadas a reduzir a despesa pública e a ajuda social possam desencadear protestos de rua potencialmente desestabilizadores.

O desafio para Paz é, como mencionado, complexo. A Bolívia sofre um declínio progressivo das reservas internacionais (fala-se de menos de mil milhões de dólares no início de 2025, em comparação com 15 mil milhões em 2014) geralmente atribuído à decisão de indexar o bolívar à moeda norte-americana e à falta de acesso ao financiamento externo. Um problema que acaba por se reverter, entre outras coisas, no crescimento dos preços no consumidor: em agosto de 2025 a inflação era de 25 por cento numa base anual, o valor mais elevado dos últimos 17 anos. O défice fiscal parece situar-se entre 9 e 12 por cento do produto interno bruto, financiado com nova dívida (41 por cento da lei orçamental de 2025): uma situação que o Fundo Monetário Internacional (FMI) define como “insustentável”. A falta de acesso ao financiamento, combinada, segundo vários analistas, com um grande atraso nos investimentos produtivos, levou a um declínio acentuado na produção de gás (até 60 por cento em comparação com 2014). Finalmente, a Bolívia é um dos países com o pior crescimento económico de toda a região, não ultrapassando 1,2 por cento no final do ano.

O impulso recebido do eleitorado poderá ser bem-sucedido: Paz Pereira, economista e senador de 58 anos, venceu as eleições, obtendo um resultado inesperado na primeira volta (nenhuma sondagem deu-lhe mais de dez por cento dos votos). Durante a campanha eleitoral, o antigo presidente da Câmara de Tarija prometeu trabalhar numa forma de “capitalismo popular”, propondo uma amnistia fiscal e uma redução de impostos para reactivar a produção e oferecer apoio aos pequenos empresários. Um modelo definido como “capitalismo para todos”, que também visava “redistribuir” os lucros em 50 por cento entre as regiões e o governo central. Este último é um tema que não pode deixar de interessar às províncias do lítio. Paz apelou, portanto, a “uma cimeira nacional para a reforma da justiça” e a maiores recursos financeiros para o sector. Além disso, Paz gostaria de modernizar a polícia nacional, tornando-a “mais profissional e transparente”. O objectivo é recolocar o país nos trilhos sem romper completamente com o eleitorado camponês e popular, ainda em parte ligado à experiência política de Evo Morales.

E o próprio líder “cocalero”, cuja candidatura foi bloqueada pelo judiciário eleitoral e penal, saudou a vitória de Paz como o “menor dos males”, considerando Quiroga, já presidente de 2001 a 2002, o expoente de um direito indigesto às batalhas camponesas e indígenas travadas durante anos. Porém, o de Paz “não é um cheque em branco”, mas sim um “voto com mandato” para que as transformações e conquistas sociais não sejam destruídas, “não se apliquem medidas neoliberais” e “não nos submetamos ao imperialismo”. Paz Pereira é filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora (1989-1993) e bisneto de Victor Paz Estenssoropresidente em quatro ocasiões. O novo chefe de Estado nasceu em Santiago de Compostela, Espanha, durante o exílio dos seus pais (lutando contra o regime militar de Hugo Banzer) e viveu em pelo menos dez países. Uma experiência que sempre apresentou como formativa na compreensão dos motivos das pessoas mais negligenciadas. Economista formado e formado em Relações Internacionais, obteve mestrado em Gestão Política pela American University (EUA).

Beatriz Marques
Beatriz Marques
Como redatora apaixonada na Rádio Miróbriga, me esforço todos os dias para contar histórias que ressoem com a nossa comunidade. Com mais de 10 anos de experiência no jornalismo, já cobri uma ampla gama de assuntos, desde questões locais até investigações aprofundadas. Meu compromisso é sempre buscar a verdade e apresentar relatos autênticos que inspirem e informem nossos ouvintes.